TEMA 06: DOAÇÃO DE ÓRGÃOS E TRANSPLANTES NO BRASIL.
FONTE: CARTA CAPITAL (DR.
DRAUZIO VARELLA).
Como
em muitas outras áreas, o Brasil apresenta enormes disparidades nas estatísticas
de doações e transplantes de órgãos. Enquanto alguns estados há anos alcançam
números comparáveis aos melhores no mundo, outros chegam ao final do ano sem
realizar um transplante sequer. Nesta entrevista, o presidente da ABTO
(Associação Brasileira de Transplantes de Órgãos), Dr. Ben-Hur Ferraz Neto,
fala sobre a situação das doações e transplantes efetivados no País e como cada
um pode contribuir para melhorar os números brasileiros na área.
Site
DV – Há alguns anos estabeleceu-se que todos os brasileiros seriam
doadores de órgãos e que quem não o quisesse fazer, teria de registrar essa
negativa no R.G. Hoje, como se define quem é ou não doador?
Ben-Hur
Ferraz Neto – A inscrição na carteira de identidade e de motorista que mostrava
a opção do indivíduo e, na sua ausência, a presunção de que se tratava de um
doador, não tem mais valor desde o ano 2000. Nós passamos do sistema de doação
presumida para o que chamamos de doação consentida. O que vale, hoje, é o que a
família resolve. Quem autoriza a doação de órgãos atualmente é a família,
começando pelos parentes mais próximos: pai e mãe, filhos, marido ou esposa e
assim por diante. Estamos convencidos de que, culturalmente, essa é a forma
mais adequada para nós.
Site
DV – Ainda assim, as negativas familiares sempre foram a principal causa
de não efetivação de transplantes. No RBT (Registro Brasileiro de
Transplantes) parcial de 2011, notamos que, em relação a 2010, houve aumento no
número de recusas na maioria dos estados. Em muitos casos, esse aumento foi
muito grande. No Maranhão, por exemplo, o número de negativas saltou de 33,3%
em 2010 para 78,6% em 2011 até o momento. A que se deve essa mudança?
Ben-Hur
Ferraz Neto – O número de negativas, à primeira vista, pode ser interpretado
como algo que aumentou, mas não é verdade. O que ocorreu foi uma mudança no
método de avaliação. Antes, a porcentagem de negativas familiares era dada em
relação ao número de doadores. Só que alguns potenciais doadores deixavam de
ser doadores no meio do caminho, como ocorre em casos de parada cardíaca, ou
algumas famílias não eram encontradas para a entrevista. Assim, a porcentagem
de negativas acabava caindo. Agora, o dado é em relação ao número de famílias
entrevistadas, o que revela um número mais fidedigno da recusa familiar no
Brasil.
Site
DV – Por esse novo método, não temos dados de alguns estados. Mesmo assim,
pelo que se sabe, o número de negativas familiares no Brasil é considerado
aceitável?
Ben-Hur
Ferraz Neto – De forma geral, entre os países melhores colocados no que se
refere a doações de órgãos, a cada quatro famílias, uma nega a permissão. Entre
os piores, a cada quatro famílias, duas negam. Nós estimamos não estar longe
disso. Pelo grau de educação e de informação do nosso povo, podemos concluir
que o brasileiro aceita bem o processo de doação.
Site
DV – Qual é o quadro atual de transplantes efetivados no Brasil?
Ben-Hur
Ferraz Neto – Em números absolutos, o Brasil é o segundo país do mundo a
realizar transplantes de órgãos (6402 em 2010, sem contar células e tecidos);
fica atrás apenas dos Estados Unidos. Mesmo assim, esse é um número muito
pequeno, se considerado o tamanho de sua população. Além disso, infelizmente,
existem discrepâncias muito grandes entre os estados. Nós deveríamos ter de 20
a 25 doadores de fígado pmp (por milhão de população), por exemplo, mas temos
ao redor de oito. Só que em São Paulo, esse número chega a 16. No Ceará,
alcança 18. São números bem próximos da demanda local e até acima de muitos
países desenvolvidos. Por outro lado, as regiões Norte e Centro-oeste sequer
têm equipes de transplante de fígado. Apesar disso, pode-se dizer que o País
está no caminho certo.
Site
DV – O que leva a essa conclusão?
Ben-Hur
Ferraz Neto – A organização do sistema, do ponto de vista de transparência e de
credibilidade, amadureceu. Hoje, apesar de todos os problemas que o Brasil
enfrenta, as pessoas estão convencidas de que ninguém consegue passar na frente
de ninguém, nem por questões econômicas nem políticas. E não consegue, mesmo.
No primeiro semestre de 2011, já registramos mais de dez doadores pmp, um
recorde histórico. Em estados como Santa Catarina, São Paulo, Ceará, Rio Grande
do Norte, os números têm aumentado progressivamente. São Paulo e Santa Catarina,
por exemplo, têm índices muito superiores à média dos Estados Unidos e da
Europa. Mas precisa haver investimento, vontade política e ações baseadas em um
programa estruturado. Não adianta sair por aí fazendo o que se “acha” que vai
resolver a questão.
Site
DV – Que medidas precisam ser tomadas para melhorar o número de doações e
transplantes realizados no País?
A
Saúde Pública como um todo tem que melhorar para que possamos melhorar também a
captação de órgãos. Quem é o potencial doador? Na maioria das vezes, é um
indivíduo que teve um AVC ou um trauma craniencefálico, que evoluiu para morte
encefálica. Em ambos os casos, trata-se de um indivíduo que até aquele momento
estava se sentindo bem e, por isso, será atendido nos serviços de emergência.
Então, na medida em que os serviços de emergência têm problemas graves de
atendimento que não superam, a possibilidade de efetivar transplantes também
fica limitada, pois ficam prejudicados o processo de diagnóstico de morte
encefálica e a manutenção dos potenciais doadores. É indispensável haver, além
de informação, a profissionalização do sistema de captação de órgãos em parceria
com os estados e uma política local de doações. Sem dúvida, esses são os três
pilares para que a questão seja desenvolvida com sustentabilidade e melhora
progressiva.
Site
DV — Ações em nível local são importantes nessa questão, portanto.
Ben-Hur
Ferraz Neto – É preciso formar profissionais que possam trabalhar em todos os
lugares e sobreviver dessa profissão em qualquer região do País. Precisamos
evoluir dos bons números pontuais para um quadro que contemple melhor
distribuição de órgãos doados e melhor acesso ao transplante no País como um
todo. Não adianta um indivíduo da Região Norte precisar de um transplante de
fígado e só poder fazer na Região Sudeste. Por ser um brasileiro como outro
qualquer, ele tem o direito de ser transplantado em qualquer estado.
Entretanto, o acesso fora do estado de origem é mais complexo.
Site
DV – A troca de órgãos entre estados é uma saída para ajudar a diminuir as
disparidades entre as regiões?
Ben-Hur
Ferraz Neto – A princípio, os órgãos captados em um determinado estado são
disponibilizados para os receptores que estão na lista daquele estado. É uma
forma absolutamente lógica de otimizar a qualidade. Transplantar um fígado que
ficou 16 horas no gelo é pior que transplantar um que ficou oito. Além disso,
esse sistema cria certo estímulo local. Na medida em que os órgãos ficam na sua
própria região, existe uma tendência de que esse trabalho seja reconhecido
naquela área.
Todavia,
existe um sistema previamente estabelecido para a troca entre regiões. Caso um
órgão seja captado em um determinado estado que não tem aquele tipo de
transplante ou que não tenha, naquele momento, nenhum receptor compatível, a
Secretaria de Saúde do local, por meio da sua Central de Transplantes, entra em
contato com a Central Nacional, que fica em Brasília. A Central Nacional,
então, redistribui esse órgão mediante alguns critérios também previamente
estabelecidos. Um deles é a malha aérea disponível. Por isso, não adianta
definir que um órgão de São Paulo vá para o Acre, se não há transporte que faça
o trajeto em tempo viável. Depois da disponibilidade aérea, vêm os critérios de
gravidade, compatibilidade, etc., o que torna o acesso ainda mais difícil.
Site
DV – O Ceará é um dos estados que figura entre os primeiros colocados na efetivação
de transplantes de vários órgãos, apesar de o Nordeste como um todo não
apresentar números tão bons. Gostaria que o senhor explicasse a experiência
desse estado.
Ben-Hur
Ferraz Neto – Existe a necessidade de um interesse local no desenvolvimento de
qualquer tipo de novidade ou progresso. O estado do Ceará criou uma política
estadual de transplantes. Não uma política de ganhar votos, mas uma política de
ação. Simplesmente foi colocada, entre as prioridades, a política de
transplantes, que consiste em investir na formação de um grupo para fazer o
trabalho de captação de órgãos. Para tanto, foram formados profissionais e
feitas contratações de pessoal. A atual coordenadora estadual do Ceará (Dra.
Eliana Régia Barbosa de Almeida) é uma das pessoas que têm atividade muito
forte na formação de equipes ao redor do Brasil via ABTO. O sucesso dessa
política, portanto, é fruto de um trabalho contínuo que obviamente requer um
investimento inicial. Hoje, a equipe transplantadora de fígado do Ceará é uma
das melhores do nosso País.
Site
DV – Pelo RTB do primeiro trimestre de 2011, percebemos certa apreensão
com o número de doações, que até aquele momento estavam abaixo das
expectativas. Já no RTB do primeiro semestre, ficou evidente uma inversão quase
completa desse quadro. O ritmo de doações e transplantes é flutuante de forma
aleatória ou existe algo que explique esse movimento em tempo tão curto?
Ben-Hur
Ferraz Neto – Existe uma sazonalidade no que diz respeito à doação, mas nesse
caso específico da diferença do primeiro trimestre para o primeiro semestre de
2011, na minha avaliação, pesou outro fator importante, as eleições estaduais.
Todas as Centrais de Transplante são órgãos oficiais das Secretarias de Estado
da Saúde. Como houve grande mudança nos governos e, consequentemente, a
substituição do secretariado, tenho conhecimento de que algumas secretarias
suspenderam os investimentos até que o novo secretário tomasse pé da realidade
daquele local.
Por
isso, algumas secretarias que tinham na sua programação contratar mais pessoas,
não o fizeram, e algumas até deixaram de renovar contratos que eram
emergenciais. Isso deve ter acarretado um decréscimo inicial que obviamente foi
percebido pelos secretários então empossados e a tendência de queda foi
revertida. Mas eu mesmo testemunhei, como presidente da ABTO, no primeiro
trimestre de 2011, uma forte preocupação por parte de alguns coordenadores de
transplante a respeito das políticas que estavam sendo freadas pelos novos
secretários.
Site
DV – O impacto de questões políticas no quadro de transplantes, então, é
imediato.
Ben-Hur
Ferraz Neto – É rápido porque são questões que podem impedir ou não a
manutenção de profissionais que trabalham naquela atividade. Bastar cortar o
cargo para cortar a ação. Como já dissemos, no Brasil, a doação de órgãos está
crescendo, mas se caem os números em São Paulo, Santa Catarina e Ceará, a
influência será muito grande, pois esses três estados são os maiores captadores
de órgãos do país. Portanto, se tivermos problemas em algumas cidades desses
estados – e tivemos –, isso deve ter repercutido nos resultados do começo do
ano.
Site
DV — Que medidas fora do âmbito político podem ser tomadas para melhorar
as estatísticas de doações no Brasil?
Ben-Hur
Ferraz Neto – O melhor a fazer é cada um conversar com seus familiares em um
momento traqnuilo, sem dor, fora de um contexto de tristeza, sobre a vontade de
ser um doador. Como os potenciais doadores são aqueles que no dia anterior ou
alguns dias antes de morrer estavam ótimos, conhecer a vontade dessa pessoa
pode ser fundamental para a aceitação ou recusa da doação. Se a vontade da
pessoa que morreu for desconhecida e aquela família nunca discutiu o assunto,
claro que aquela hora de dor é o pior momento para falar sobre este assunto, e
a probabilidade de uma negativa será sempre maior. Então, se as pessoas
quiserem que seus órgãos sejam doados, a melhor forma de fazê-lo é conversar
com seus familiares a respeito de sua vontade e intenção.